top of page

Documentario One of Us - Review


O documentario One of Us (Um de Nos), lancado pelo Netflix no dia 20 de Outubro, retrata de forma tocante e complexa a vida de 3 judeus que deixaram o hassidismo e as consequencias desta escolha. O documentario foi feito por um periodo de 3 anos, revelando as transformacoes, duvidas e o preco a ser pago por aqueles que deixam a isolada comunidade hassidica.


Criado e dirigido por Heidi Ewing e Rachel Grady, mesmas diretoras do documentario Jesus Camp (O Acampamento de Jesus, que lida com um acampamento voltado para criancas pentecostais americanas), One of Us foca na percepcao de quem deixa a religiao...enquanto Jesus Camp foca em quem fica.


Para quem nunca nem foi hassidico e muito menos um evangelico hardcore, ambos os documentarios parecem frutos de ficcao, com um mixto de loucura e desespero. Mas para quem jah deixou algum tipo de doutrina religiosa para tras...ambas as obras de Ewing e Grady sao dolorosas de assistir.


Os tres individuos cujas vidas sao mostradas em One of Us sao Etty, uma mae de 7 filhos que se divorcia do marido abusivo, Luzer Twersky que jah tinha deixado o movimento hassidico aproximadamente 10 anos antes do documentario e Ari, um adolescente com traumas profundos que geram uma vida conturbada.


Uma quarta pessoa mostrada no documentario cujo historico nao eh revelado, mas cuja presenca tambem causa impacto eh Chani Getter, uma ex hassidica que ao ser vitima de um casamento forcado, fugiu do hassidismo aos 23 anos de idade, criando seus filhos como mae solteira e assumindo sua homossexualidade. Hoje Getter eh uma lider espiritual da One Spirit Interfaith e conselheira para a organizacao Footsteps, que auxilia a transicao daqueles que deixam a vida hassidica para que se adaptem a vida secular. Na teoria, nao soa muito interessante, mas na pratica, a Footsteps faz um trabalho enorme.


A coragem de mostrar suas historias e vulnerabilidade ao publico eh um dos pontos mais tocantes do filme. Esta coragem eh mais explicitamente mostrada na atitude de Etty, que no inicio nao mostrava a face, e que depois, nao soh nos mostra o rosto, mas tambem nos revela quem ela realmente eh e quem quer ser.


Luzer se torna totalmente vulneravel frente as cameras quando revela que mora dentro de um trailer, o que segundo ele, pode ferir sua imagem.


E Ari... o jovem Ari... apos abandonar a vida hassidica por completo e experimentar de uma forma descontrolada o mundo lah fora, acaba por ter coragem de revelar ao publico o motivo de sua dor, Ari foi vitima de abuso sexual quando crianca, por um homem mais velho durante um acampamento de verao.


A historia de Etty eh a mais reveladora porque mostra a essencia e o poder da comunidade hassidica, que pode ser usado para o bem ou para o mal. Eh impossivel vencer a comunidade. Eh uma causa perdida tentar lutar contra a comunidade.


Luzer sabia disso e nao tentou brigar. Saiu e perdeu contato com familia, ex-esposa e filhos.


Etty tambem sabia, mas teimosamente continua a lutar ateh hoje.


Um dos pontos que valem ser ressaltados no filme eh a revelacao de que a maioria dos hassidim sao felizes com a vida que tem. Uma vida cheia de limitacoes e a 'figura paterna absoluta' do Rebbe (ha mais de 50 grupos hassidicos hoje em dia, cada um deles possui um lider que eh chamado de Rebbe) promete e dah um sentimento de seguranca real. O senso de comunidade eh imenso. Todos se conhecem. Todos se ajudam. Todos sao vistos como UM, o poder do grupo supera e suprime a vontade do individuo. A maioria das pessoas estah ok e se sente feliz com isso.


Mas alguns nao.


Alguns hassidim questionam. E alguns hassidim, como Etty, Ari, Luzer e Getter saem e pagam um preco altissimo que eh serem cortados de toda a vida que conheciam, de todos os amigos, parentes e... filhos. Nao ha perdao ou flexibilidade. Segundo os lideres de movimentos hassidicos, perdoar ou ser flexivel com quem abandona o movimento causaria a auto-destruicao do grupo, uma implosao. Manter o total isolamento eh a unica maneira de garantir a existencia de grupos hassidicos extremos.


O resultado do abandono que estes 3 individuos sofrem os levam a procurar seguranca em locais jamais pensados por eles, como em drogas, servicos religiosos inusitados e tentativas de suicidio.


Eles nao estao sozinhos. Ha muitos outros ex-hassidim que sofrem das mesmas mazelas... alguns nao aguentaram a dor e terminaram as proprias vidas. Outros, com medo das consequencias sofridas pelos que sairam, preferem continuar vivendo uma vida dupla, religiosa para os vizinhos e nao-religiosa quando ninguem estah por perto, como Luzer e o jovem Ari fizeram por algum tempo.


O sentimento de nao mais ser 'Um de Nos' eh devastadora e alem das reunioes da Footsteps, nenhuma outra organizacao que ajuda ex-hassidim eh mostrada. Possivelmente porque nenhuma outra existe (*veja alteracao do post no proximo paragrafo). Pelo menos nao em Nova York. E nem no Canada, onde moro. Muito menos no Brasil. E nao conheco nenhuma na Europa. Na Asia certamente nao ha nenhuma. Ateh onde eu saiba, somente a Footsteps em NY e alguns lideres comunitarios em Israel ajudam nesta transicao.


* ALTERACAO: apos a publicacao do post, fui informada da existencia do Project Makon, uma iniciativa de Alisson Josephs, a criadora do site Jew in the City, que ajuda haredim que querem deixar o haredismo, sejam hassidicos ou nao, a fazerem a transicao para uma vida religiosa mais equilibrada - www.projectmakom.org.*


Apesar do adolescente Ari parecer a figura mais timida do documentario, ele alimenta e expressa questoes avassaladoras e capazes de trazer um momento de silencio a qualquer religioso de plantao, incluindo eu. Como responder a dor que ele sente? Como olhar nos olhos de um injusticado e saber que JAMAIS justica serah feita no caso dele?


A sutil complexidade de One of Us eh a falta de respostas ou solucoes. O documentario termina com nossos 3 personagens seguindo seus caminhos, sem saber o que estah pela frente, apenas vivendo um dia na esperanca de ter um amanhecer melhor.



Anotacoes para quem nao tem ideia do que escrevi acima


Ha entre 14 e 17 milhoes de judeus no mundo. Vamos ser mais tradicionais e ficar com o numero de 14 milhoes.


Somente 20% (algumas pesquisas dizem 22%) destes 14 milhoes de judeus sao ortodoxos.


Sendo assim, aproximadamente 2.8 milhoes de judeus no mundo inteiro se consideram 100% observantes das leis judaicas, ou seja, se consideram ortodoxos (observam Shabbat, cashrut, feriados etc).


Destes 2.8 milhoes de ortodoxos no mundo, aprox. 500 mil sao hassidim, dentre eles, 120 mil sao Satmars.


A maioria destes 500 mil hassidim existentes hoje moram em Israel ou nos Estados Unidos. Destes 500 mil hassidim, aproximadamente 120 mil sao Satmars (os 3 individuos do documentarios eram satmars).


De uma forma resumida, cerca de 22% dos judeus sao ortodoxos e os hassidim sao uma minoria dentro da ortodoxia (https://berkleycenter.georgetown.edu/essays/demographics-of-judaism).



EUA e Brasil - Nova York e SP

Ha aproximadamente 5.3 milhoes de judeus nos EUA versus 100 mil no Brasil.


Se pegarmos dados americanos que "alargam" a populacao judaica, incluindo pessoas que se identificam como judias (filhos de casamento onde o pai eh judeu e a mae nao eh), a populacao judaica sobre para aprox. 7 milhoes.


Ha aprox. 2 milhoes de judeus em Nova York versus 60 mil em SP.


O contraste destes numeros revela que nos EUA, certos temas judaicos sao conhecidos por boa parte da populacao americana que estah familiarizada em ver judeus na tv, revistas, nas ruas etc. Ao mesmo tempo, no Brasil, um judeu ainda eh visto como um ser exotico, isolado e extremamente dificil de encontrar, em outras palavras, o brasileiro nao sabe nada sobre o povo judeu. Alguns brasileiros pulam de site em site lendo sobre religiao judaica, mas quando falamos de pessoas judias e suas vidas cotidianas, para o Brasil, tal tema ainda eh um misterio devido a minuscula comunidade judaica brasileira.


Sendo assim, antes ou depois de assistir One of Us, alguns esclarecimentos devem ser feitos:


Ha mais de 50 grupos hassidicos hoje em dia. A maioria dos grupos hassidicos (seguidores e lideres) faleceram vitimas do Holocausto. Os Rebbes e seus seguidores que sobreviveram ao Holocausto se dirigiram em massa para os EUA ou Israel. Ha um unico Rebbe no Brasil, Meshulem Zisha Beer de Ratzfert.


Grupos hassidicos variam seu nivel de extremismo religioso dependendo da personalidade de seu Rebbe. Se o Rebbe for...digamos... legal, como o Alexander Rebbe em NY, entao seus seguidores apresentarao uma personalidade mais amena... se o lider for a favor do estado de Israel, como o Guerrer Rebbe (alguns pronunciam Gur) seus seguidores nao farao nenhum alarde e jamais se meterao em protestos contra o Estado de Israel, se o lider for extremo e contra o Estado de Israel como o Satmar Rebbe, entao seus seguidores serao extremistas e contra o Estado de Israel, o que totalmente hipocrita porque todos eles usufruem da seguranca oferecida pelos soldados do Estado.


E por ai vai... cada Rebbe estabelece as diretrizes de como seus seguidores devem se comportar, agir, pensar e viver. Ninguem faz uma grande mudanca na vida sem informar o Rebbe. Ninguem toma decisoes importantes sem pedir a bencao do Rebbe. Ninguem desobedece o Rebbe. Eh proibido questionar o Rebbe. Literalmente.


E enquanto a maioria dos hassidim sao felizes com um modo de vida assim, uma minoria nao eh. Desta minoria, alguns escolhem viver uma vida-dupla e outros decidem sair de vez.


E ao sair do hassidismo, as portas do inferno na terra se abrem, porque ela descobre que TUDO o que a pessoa sabe sobre o mundo eh o que o Rebbe permitiu que ela soubesse. E o Rebbe nao lhe deixou saber muito... O ensino de materias seculares como matematica, ingles, historia, geografia etc. eh proibido em escolas hassidicas. Ir para a Universidade eh algo impensavel para boa parte dos grupos hassidicos. Somente alguns seletos membros de certos grupos hassidicos conseguem vencer o preconceito e ingressar no ensino superior. Sem o conhecimento de materias seculares, a maioria dos hassidim nao consegue emprego fora da comunidade hassidica.


Membros de grupos hassidicos nao sabem fazer escolhas. Parece algo irreal para nos que nao nascemos em um movimento hassidico, mas... eh a verdade. O Rebbe escolhe o que eh o melhor para a comunidade, e como escrevi acima, o Rebbe decide o que a pessoa deve fazer quando confrontada com situacoes importantes. O judeu hassidico entao nunca contemplou a possibilidade de decidir algo importante... e ateh mesmo, menos importante. Todos os ex-hassidim dizem que o maior desafio de adentrar a vida secular eh se acostumar com a ideia de tomar decisoes. O que eh bom? O que eh mal? O que eh considerado normal? O que nao eh? O que aceitavel pela sociedade? O que eh considerado normal? Qual eh o limite?


Ao mesmo tempo, a vida hassidica oferece um senso de comunidade, um senso de pertencer jamais visto em qualquer outro agrupamento humano. Eh maravilhoso e invejavel o senso comunitario dos hassidim, a forma como se importam e lutam uns pelos outros, a maneira como se juntam ao defender uma causa comum... eh algo impressionante.


Eh dificil falar de hassidismo sem ser pego pela armadilha de descrever somente os extremos dos aspectos positivos e negativos deste modo de vida. Na maioria das vezes que tentamos descrever, nossa descricao vira algo 8-80... preto ou branco... realmente dificil encontrar um ponto de equilibrio. Talvez porque tal ponto de equilibrio nao exista... realmente nao sei.


Na minha experiencia pessoal com as poucas amigas hassidicas (nao Chabad) que tenho, o sentimento de alegria e tristeza que se forma em meu coracao se fundem porque por mais que eu tente procurar o ponto de equilibrio na existencia delas, eu nao consigo encontrar. Sao mulheres maravilhosas e de personalidade doce, atenciosa e cativante... mas... que devem seguir atentamente todas as regras estipuladas pelos seus grupos... caso quebrem somente uma, por mais boba que seja, sofrerao consequencias.



Mas e o Chabad e o Breslov, nao sao hassidicos tbm?

Chabad e Breslov sao grupos hassidicos diferentes dos outros 50 porque nao possuem Rebbes vivos. Desta maneira, nem o Chabad e nem o Breslov possuem uma autoridade central, ou seja, um individuo que ocupe a posicao de autoridade maxima do grupo.


Chabad e Breslov estao mais ou menos como a situacao do povo judeu no livro de Juizes...sem um rei, onde cada um faz o que lhe eh bom aos seus proprios olhos.


Por isso ambos os movimentos se dividem em varias camadas de observancia religiosa, que vao das mais extremistas (Breslovers haredim de Meah Shearim e os Chabadniks haredim de Bnei Brak) ateh as mais modernas (Breslovers Nanach e os Chabadniks modernosos que encontramos mundo afora).


Caso o movimento Chabad e o Breslov decidissem eleger um novo Rebbe, a festa acabaria para muita gente, pois o Rebbe teria total autonomia para mudar o que ele bem entendesse e sem correr o risco de ser questionado pois no hassidismo... eh proibido questionar o Rebbe. Entao se este Rebbe eleito decidisse "fim de se misturar com judeus nao-religiosos, agora vamos todos fechar as portas de nossas casas para eles", well... eh isso que iria acontecer. Basicamente, se o novo Rebbe dissesse que todos deveriam usar azul, todos usariam azul. Se ele dissesse que todos deveriam usar branco, todos usariam branco. Esse eh o poder de um Rebbe.


E como nem o Chabad e nem o Breslov tem Rebbes vivos, os dois movimentos hassidicos sao menos extremos que os demais.