Quando Uma Ave eh Casher? A Disputa do Pato Muscovy

Dedico meu blog a discutir aspectos da vida pratica, mas... um pouco de teoria as vezes cai bem. Recentemente li a interessante historia do pato muscovy e a batalha cerrada que foi a discussao rabinica para determinar se ele era casher ou nao. Se vc gosta deste tipo de assunto, vamos lah:
CASHRUT DE AVES
A Torah eh bem especifica quando lida com cashrut de peixes e mamiferos.
Peixes devem ter escamas e barbatanas, facil de identificar.
Mamiferos devem ter cascos fundidos e ruminar. Tbm facil de identificar.
Porem... quando o assunto eh passaro, a Torah soh cita 24 nomes de passaros proibidos para o consumo... e o significado do nome de alguns deles se perdeu com o tempo... ou seja... eh impossivel hoje em dia identificar com precisao alguns destes 24 passaros...e nem sabemos se estes nomes desconhecidos se referem a toda uma especie ou soh membros de certa especie. Alem disso, a Torah tambem nao descreve uma lista de requisitos para que um passaro seja considerado casher ao mesmo tempo que ha milhares de especies de passaros no mundo. Entao... como definir a cashrut de uma ave?
Para trazer luz a este dilema, nossos sabios que escreveram a Mishna (http://www.vidapraticajudaica.com/single-post/2015/08/27/O-que-eh-Mishna-Gemara-Talmud-Midrash-PARTE-2) nos ensinaram sinais que servem para identificar se um passaro eh casher ou nao. Sao eles:
a) o passaro nao pode ser um 'doress' (predador, que apreende sua comida com suas garras e a levanta do chão para a boca, que segura a presa com suas garras , que atinge sua presa com os pés e a come enquanto ela ainda está viva, que arrasta sua presa com suas garras, que injeta uma espécie de veneno em sua presa e tambem......a Mishnah acrescenta um método alternativo de identificação de um pássaro que é um 'doress': ele "divide os dedos dos pés em duas partes", isto é, quando está sobre uma corda, ele coloca dois dedos na frente e dois na parte de trás, como um papagaio...entao... papagaio NAO eh casher, embora seja um passaro pacifico, ele eh considerado um doress)



Os dedos do papagaio se dividem em 2 pra frente e 2 pra tras, por isso ele nao eh considerado casher
E a lista segue adiante, idealmente para ser casher o passaro deve ter:
b) o passaro tem que ter um "dedo extra" na parte de tras do peh, como o encontrado no peh da galinha:

c) no sistema digestivo, o pássaro tem que ter uma bolsa expandida (PAPO) e muscular perto da garganta. É uma parte do trato digestivo, essencialmente uma parte ampliada do esôfago, usada para armazenar temporariamente alimentos.

d) depois de morto, a moela pode ser descascada facilmente.... esquecam, eu nao vou colocar foto de uma moela descascada huahauahauauauau na na ni na nao!
e) eh necessaria uma tradicao oral solida (em hebraico, mesora), feita por rabinos respeitados e seguida por muitos anos, que permita o consumo de uma certa ave. Isso se deve ao fato de que o Talmud relata ocasioes em que comunidades inteiras comeram uma certa ave, e tempos depois descobriram que tal ave apresentava comportamento de 'doress'... ou seja, nao era casher. Entao, para evitar a fadiga, eh melhor comer somente aves que tenham uma tradicao estabelecida de cashrut (Chulin 62b.).
Bom... muitas discussoes se seguiram com o passar dos seculos se os 4 sinais (dedo extra, papo, moela que descasca e tradicao oral) sao realmente necessarios ou se soh 3 destas caracteristicas bastam... por exemplo, o ganso eh considerado casher por TRADICAO (mesora), pois ele NAO possui papo (bolsa expandida abaixo da garganta para armazenar comida temporariamente).
Lista RESUMIDA de passaros considerados casher:
Galinhas, patos, gansos, pombas, codornas, peru, pardal, perdiz, faisao etc.
Lista RESUMIDA de passaros nao-casher:
Corujas, pelicanos, águias, avestruz, abutres, pinguim, falcoes, gaivota, urubu, cisne, pica-pau, flamingo, pavao etc.
O DILEMA DOS PASSAROS DO NOVO MUNDO
Enquanto todas as comunidades judaicas se concentravam no Velho Mundo, eram muito raras discussoes sobre determinacao de cashrut de aves, jah que todas as comunidades tinham suas tradicoes alimentares bem determinadas. Caso alguma especie nova surgisse em alguma cidade, os rabinos enviariam cartas uns aos outros com a descricao do passaro, ou ateh mesmo uma amostra viva e ai saberiam se havia alguma tradicao estabelecida de consumi-lo ou nao.
Mas entao, com a descoberta do Novo Mundo e de novas especies de aves que habitavam as Americas, muitas duvidas surgiram.
O peru selvagem, por exemplo... eh um passaro nativo dos Estados Unidos e trazido para a Europa por exploradores espanhois no seculo 16. Nao havia tradicao judaica nenhuma sobre o seu consumo. Casher ou nao?

Apos varios rabinos determinarem que o peru apresentava as 3 caracteristicas fisicas de um passaro casher, o peru foi decretado casher em 1646 pelo R. Eliezer Ashkenazi, tambem conhecido como o Damesek Eliezer em seu comentario do tratado talmudico Chulim 63b, e esta regra de cashrut foi aceita como halacha pelos demais sabios da epoca que permitiram o consumo desta ave como casher, mesmo nao havendo nenhuma tradicao (mesora).
Houveram algumas discussoes jah que o Shulchan Aruch (Codigo de Lei escrito pelo Rabino sefaradita Yosef Karo) e o Rama (tambem pronunciado como Rema, que eh o Rabino Moses Isserles que fez observacoes no Shulchan Aruch citando as tradicoes ashkenazitas) proibiam o consumo de aves que nao tivessem uma mesora de cashrut... porem... o consumo de carne de peru jah tinha se estabelecido em varias comunidades judaicas, e... o final... o peru se tornou uma preferencia na dieta casher!
Basicamente, de TUDO o que eu li a respeito (por algum motivo, esse assunto de passaros me interessa bastante) quando os Rabinos comecaram a discutir seriamente a cashrut do peru, a populacao judaica jah o estava consumindo em massa. O leite jah havia sido derramado, digamos assim. Entao... como ha uma tradicao que ensina que Hashem jamais deixaria o povo judeu errar em massa, a maioria das autoridades consideraram o peru casher. No entanto, houve alguns raros rabinos aqui e ali, principalmente na Lituania que nao aceitaram o recente status de casher do peru, e evitaram come-lo. Hoje em dia eu acredito que 100% dos judeus comem carne de peru. Talvez exista algum rabino 'das antigas' que nao coma, mas... peru se tornou um prato mais do que comum na dieta casher.
Veredicto para a carne de peru que nao tinha mesorah: KOSHER!
O PATO MUSCOVY

Com o pato muscovy (no Brasil ele eh conhecido como pato-do-mato, pato-crioulo, pato-bravo, cairina, pato-argentino, pato-selvagem, pato-mudo e pato-preto) a coisa foi mais complicada. Vou trata-lo somente como MUSCOVY, para evitar a fadiga, ok? Esta especie eh usada no Norte do Brasil no famoso prato chamado Pato no tucupi.
Ninguem sabe exatamente o motivo, soh sabemos que a discussao sobre a cashrut desta ave se originou nos Estados Unidos, foi parar entre os grandes poskin (legisladores) da Europa e depois a discussao migrou para Israel e se estende ateh hoje.
O pato muscovy eh nativo do Mexico, America Central e America do Sul. Dizem que a carne dele eh mais semelhante a carne de bezerro do que a de galinha, jah que lhe falta a textura gordurosa que eh uma caracteristica comum da carne de outras especies de pato.
A primeira discussao detalhada sobre a cashrut desta ave foi feita atraves de cartas escritas pelo Rabino Bernard Illowy, que liderava a comunidade de New Orleans, datada de 1862.
A carta foi destinada a dois grandes rabinos europeus: R. Samson Raphael Hirsch, da Alemanha e R. Nosson M. Adler que era o Grao Rabino de Londres e Hanover, na Alemanha.
Inicialmente descrevendo como era a vida judaica nos Estados Unidos, R. Illowy relatou que descobriu que um de seus congregantes criava "passaros estranhos" chamados 'muskovy duck'. Como R. Illowy nao encontrou nenhuma mesora sobre a cashrut da ave, proibiu o seu consumo.
Alguns dos membros da comunidade se opuseram, dizendo que eles tinham sim uma mesora que permitia o consumo do animal, e que tal mesora foi deixada pelo antigo hazzan (cantor congregacional) da comunidade. Tambem informaram ao Rabino que o pato muscovy era consumido por judeus das comunidades de Charleston e Jamaica.
R. Illwoy disse aos seus congregantes que nao sabia da integridade halachica das duas comunidades apontadas e que o antigo hazzan de New Orleans tambem nao era muito halachicamente confiavel jah que ele tinha uma loja que vendia carne de porco no Shabbat.
Alem disso, R. Illowy explicou a sua congregacao que uma mesorah eh MULTIGERACIONAL, vem de varias geracoes e que o pato muscovy era um animal novo para os judeus... nao havia mesora multigeracional, portanto, ninguem deveria consumi-lo ateh que todas as duvidas fossem esclarecidas.
Rabino Nosson M. Adler, ao ler a carta de R. Illowy, respondeu que ele sempre preferia ouvir os 2 lados de uma historia, mas neste caso do polemico pato, ele preferia proibir seu consumo jah que em Londres o muscovy era considerado nao-casher devido a falta de uma mesora (exploradores espanhois e portugueses trouxeram este pato a Londres no seculo 16).
Rabino Hisch tambem proibiu o consumo do muscovy, citando em sua carta o mesmo motivo de R. Adler: a falta de uma mesora.
Mas..... ao mesmo tempo, varios outros rabinos encontraram leniencias que permitiam o consumo da ave... entre eles estao R. Naftali Tzvi Yehuda Berlin (conhecido como Netzit), citando que varias localidades jah haviam estabelecido o pato muscovy como casher. E sendo assim, nao poderia ser considerado nao-casher sem a apresentacao de evidencias que provassem tal! Ou seja... o pato era casher ateh que se provasse o contrario!
R. Yosef Aharon Taran, da Argentina, dedicou boa parte de seu livro Zichron Yosef, escrito em 1924, para a luta em defesa da cashrut do pato muscovy.
Por que ele fez isso? Porque varios individuos que eram contra a cashrut deste pato decidiram enviar um casal de muscovys da Argentina para Jerusalem, a fim de que fossem analizados pelo Rabino e Av Beit Din (cabeca de um beit din) Shmuel Salant (1816-1909), em 1908.
Somente a femea do casal de muscovys sobreviveu a viagem, e depois de muita discussao, R. Salant decretou o pato casher, chamou um shochet (profissional que abate animais conforme as leis de cashrut) e respondeu ao R. Yosef Aharon Taran que o pato havia sido consumido conforme a halacha em Erev Pessach (um dia antes de Pessach).
Alem desta permissao, R. Taran fez questao de mencionar que outros rabinos de renome tambem consideravam o pato casher.
Mas mesmo com tais cartas favoraveis, os desafetos do muscovy nunca descansaram e nem o aceitaram como casher.
Entre 1949 e 1954, todos que viviam em Israel enfrentaram uma grande dificuldade financeira, e por isso, muitos poskim (legisladores) permitiram o consumo dos patos muscovys que haviam sido importados, pois era melhor consumi-los do que padecer de fome. Na verdade, os pais de meu marido (que ainda era solteiros e ainda nao se conheciam) fugiram da Europa durante o Holocausto e chegaram em Israel nessa epoca. Devido as dificuldades e mazelas que viram e sentiram, se mudaram para o Brasil, coincidentemente, no inicio da decada de 50. Meu sogro, z"l, foi morar no Rio de Janeiro sozinho e minha sogra, z"l, juntamente com a familia foram para Sao Paulo. Se conheceram anos depois em Sao Paulo, se casaram e no inicio da decada de 60 e devido a instabilidade causada pela renuncia de Janio Quadros e o temor que o Brasil se tornasse socialista ou que houvesse um golpe comunista, ambos ficaram apreensivos devido aos traumas que traziam do Holocausto e decidiram se mudar para o Canada.
Mas voltando ao pato muscovy... o dilema sobre a cashrut dele persiste ateh HOJE, jah que estes patos podem ser cruzados com outras especies que eram consideradas casher, como o pato pekin (pequim). Os filhotes deste cruzamento sao geralmente estereis. Entao... se uma decisao geral nunca foi estabelecida, o pato muscovy eh casher ou nao? E os filhotes hibridos do cruzamento de um pato muscovi e uma pata pekin (pequim) sao casher?

Pato Pekin (Pequim)
A discussao continua ateh hoje.
No geral, a regra eh: quem jah consumia o pato muscovy com autorizacao de seu rabino, que continue seu consumo. E quem nunca consumiu, que consulte seu proprio rabino para saber o que fazer.
Quack, quack,
Esther