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Review Completa de SHTISEL - TERCEIRA TEMPORADA



Depois de um longo intervalo, Shtisel voltou para nossas telinhas com uma excelente terceira temporada. Não darei spoilers, não se preocupe.


Primeiro, farei minha review (resenha/revisão) da série Shtisel, e depois mostrarei fotos e falarei de alguns detalhes que muitas pessoas querem saber a respeito.


 

É difícil explicar porque Shtisel se tornou uma série de tamanho sucesso internacional.


Em uma era em que séries, filmes e até mesmo animações esbofeteam o público com velocidade, barulho, violência, sedução e gore (cenas brutalmente sanguinolentas) a fim de extrair emoções de quem as vê (e nem sempre conseguem), por quê nos apegamos tanto ao passo lento e silencioso de Shtisel.


Os dramas da família Shtisel incluen relacionamentos questionáveis, amor verdadeiro, momentos cômicos, dúvidas...no entanto, a vida de cada personagem é explorada de uma forma natural, sem os exageros aos quais estamos acostumados a ver em séries americanas.


Se você quiser ler minha review com curiosidades da primeira e segunda temporada da série, clique neste link: https://www.vidapraticajudaica.com/single-post/2018/12/29/review-vamos-falar-da-s%C3%A9rie-shtisel


O orçamento de Shtisel é baixo, a terceira temporada foi filmada em apenas dois meses e toda a produção sofreu as limitações causadas pelo COVID-19 (a série foi filmada em 2020). Pra vocês terem uma idéia do quão limitado é o orçamento, um dos criadores da série, Ori Elon, revelou em uma entrevista que o motivo pelo qual Shtisel não tem cenas de Shabat e feriados judaicos é porque não há orçamento para bancar as despesas com os alimentos necessários (https://www.thejc.com/news/the-diary/work-has-started-on-third-season-of-shtisel-co-creator-yehonathan-indursky-reveals-1.483869).


No entanto, mesmo com limitações, a série conta com ótimos escritores, que sabem colocar cada frase e usar cada momento de silêncio com muita sabedoria. Os personagens principais ainda continuam falando yidish entre eles, e hebraico quando necessário.


A terceira temporada manteve a mesma essência da primeira e segunda: Anseio, aspirações, saudade, constante sentimento de que está faltando algo, risos e lágrimas. Se você se emociona facilmente, pegue sua caixinha de lenços de papel antes de assistir, porque o choro é garantido.


A história se passa 4 anos após o último acontecimento da segunda temporada. Akiva (Michael Aloni) continua sendo Akiva, mesmo sendo o pai de uma bela bebezinha, como visto nos trailers, ele está igualzinho ao que você se lembra. O patriarca Shulem Shtisel (Dov Glickman) é com certeza o pilar que sustenta a série. Carismático e de intenções ambíguas, Shulem ainda nos surpreende com suas maquinações e simpatia para salvar seu emprego como diretor de uma escola infantil e ainda tem que lidar com o amor e ódio fraternal que possui com o irmão Nuchem Shtisel (Sasson Gabai) . Giti Weiss (Neta Riskin) ainda não superou o trauma causado por seu marido, e tenta - de forma desesperada - fazer com que sua família seja normal para que os problemas pelo qual ela passou finalmente saia das rodas de fofoca do bairro. E a emoção aflora todos os sentidos ao vermos a interpretação magnifícia do drama pessoal de Ruchami (Shira Haas), que agora está casada e trabalhando. E uma menção especial para as aventuras de Zvi Arie Shtisel (Sarel Piterman), cujas adaptações a vida moderna foi o centro cômico da série.


Os criadores de Shtisel, Yehonathan Indursk e Ori Elon prometem que nenhum personagem abandonará a vida religiosa, já que ambos decidiram criar a série para mostrar o lado comum e positivo da comunidade haredi, mesmo dentro de uma família um pouco desajustada (para os padrões haredi).


Os longos momentos de silêncio foi o que mais me intrigou nessa temporada. Quem nunca ficou por um momento sozinho em silêncio, em algum cômodo da casa, comendo algo totalmente aleatório enquanto pensa nas tristezas da vida?


A simplicidade, e eu diria até mesmo humildade mostrada nos personagens é cativante. Em um mundo onde todos se vestem da mesma maneira, conseguimos ver claramente o poder do indivíduo.


 

CURIOSIDADES DA TERCEIRA TEMPORADA



GEULA (leia-se Gueúla)

A série se passa em Geula, uma bairro haredi de Jerusalém que fica ao lado de Meah Shearim. Geula é uma área super populosa e seus moradores são em sua maioria haredim, sejam eles lituanos, sefaraditas ou hassídicos. Não há nenhuma atração turística nessa área, e o fato de que é necessário obedecer as regras de vestimenta para homens e mulheres para transitar nas ruas sem chamar a atenção fazem com que agências de turismo risquem essa área de seu programa de viagens. Embora a maioria absoluta de moradores e frequentadores deste bairro sejam pessoas normais e de bom coração, há sempre aquele 1% que iria olhar feio ou até mesmo fazer comentários nervosos com quem se veste fora do que é considerado a norma do bairro. Até mesmo a produção de Shtisel sofreu protestos nessa nova temporada, porque moradores de lá acharam o cúmulo que uma série televisiva com atores vestidos de haredim estivessem utilizando o bairro para suas filmagens. Depois de alguns protestos bem intensos, a produção teve que mudar o cenário para um apartamento em outro bairro.


Pessoalmente, eu ADORO Geula por causa das lojas de artigos religiosos. A rua principal do bairro é tomada por lojas pequenas de ambos os lados, onde encontramos artigos bem interessantes. Caso você decida visitar Geula em sua próxima visita a Israel, aconselho que mulheres usem saia longa e blusas com manga até o cotovelo e sem decote. Quanto aos homens, não há nenhuma regra específica, mas te digo que se você evitar cores ou estampas gritantes, terá uma melhor experiência.





JUDEUS LITUANOS

Rabino Yosef Shalom Elyashiv


Você verá quadros com a foto do Rabino Elyashiv na escola onde Shulem Shtisel ensina e em outras paredes mostradas na série. É um costume no mundo ortodoxo colocar quadros com fotos de grandes rabinos nas paredes da casa, escolas, jardim de infância etc.


Rabino Elyashiv foi um Gadol Hador (líder de uma geração), sendo considerado a maior autoridade haláchica entre lituanos, e ver sua imagem sendo usada na série diz a bons entendedores que a família Shtisel é haredi-lituana.


Em um passado não muito distante, lituanos e hassidim eram inimigos. Enquanto lituanos, liderados pelo Gaon de Vilna (1720-1797) defendiam a razão e intelectualidade e se recuperavam dos traumas causados pelo falso messias Shabtai Tzvi (1626-1676), os primeiros hassidim davam exclusividade ao coração, emoções e misticismo (hassidim do passado eram bem diferentes dos de hoje em dia) e muitas crises se instalaram. Hoje em dia, com o fato de que hassidim vão a yeshiva, estudam e as pessoas dialogam mais do que antigamente, a animosidade entre esses dois grupos judaicos é praticamente extinta.


Mas voltando a Rav Elyashiv, a maioria das pessoas não conhecem sua história, então vou contar um pouco do que foi contado em uma aula de Rebbetzin Tehila Abromov. Depois de 17 anos de casamento e sem conseguir ter filhos, o casal Avraham e Chaya Musha (alguns escrevem Moussa) Elyashiv tinham praticamente desistido de ser pais. Um dia, a mãe de R Elyashiv foi visitar o pai dela e ele não estava em casa. Ela então foi no pequeno jardim da casa do pai dela, e pensando estar sozinha, ela chorou em voz alta, contando para Deus todos os sentimentos que ela tinha por nunca ter tido filhos. Quando ela se recuperou e se recompôs, ela entrou na casa do pai dela e ficou surpresa ao vê-lo perto da porta que dava para o jardim. Ele então disse a ela: "Era isso que estava faltando." (ele quis dizer que até agora ela tinha sofrido e rezado muito, mas essa foi a primeira vez que ela tinha realmente despejado todos os anseios de seu coração diante de Hashem).


Rabino Elyashv nasceu pouco tempo depois, o filho de uma oração sincera. Ele viveu por 102 anos (1910-2012) em Geula, onde estudou, ensinou e foi procurado por judeus de todas as esferas do Judaísmo para resolver questões complexas. Hoje, R. Eliashiv possui mais de 1400 descendentes, e enquanto estava vivo, ainda testemunhou a chegada da sexta geração de sua família, quando um de seus bisnetos teve um neto.






MULHERES PODEM DIRIGIR NO MUNDO HAREDI?

O mundo haredi não é homogêneo, ou seja, nem todos os haredim seguem o mesmo estilo de vida. Há os que possuem smartphone e os que abominam smartphone... há os que usam computador e os que ainda só enviam mensagens via fax... há os deixam as mulheres dirigirem e os que não... há os haredim americanos que são mais maleáveis e no geral, comunicativos, e há os haredim israelenses que no geral, são mais religiosamente hardcore.


É um erro colocar todos os haredim no mesmo balaio.


Porém, uma coisa é verdade, em muitos grupos haredim, sejam eles hassídicos ou não, mulheres não dirigem. O volante pertence ao marido. Em certos grupos, nem mesmo rapazes SOLTEIROS podem dirigir. O motivo não é muito convincente, mas... lá vai: eles acham que mulheres dirigindo não está de acordo com os princípios de tziniut e que dirigir facilitaria que elas cometessem erros e pecados. Enfim... isso é MUITO, mas muito discutido em fóruns e comunidades religiosas. Honestamente, uma mulher andando pelas ruas e pegando ônibus e trem se expõe muito mais aos olhos do povo do que uma mulher que dirige seu carrinho... e se uma mulher quiser realmente fazer o mau, well, basta pegar um táxi. Ou seja, racionalmente o motivo que dão para mulheres não dirigir não faz sentido algum, mas... é a regra de algumas comunidades. Os mesmos motivos são dados para rapazes solteiros, que eles vão pecar e se tornar irresponsáveis... o que, eu diria, faz sentido huahuaua


Uma amiga minha não dirige, pois é haredi-hassídica. Aí as vezes eu a levava para buscar as netas na escola (que não era haredi, mas yeshivish e a maioria absoluta de mulheres yeshivish dirigem) e me dizia o quanto estava impressionada com as mulheres religiosas ao volante, pois ela sempre pensou que "mulher ao volante, pecado constante", mas ela via que todas as mães que iam buscar as filhas de carro eram judias normais, que se comportavam de forma normal, que não apresentavam nenhum comportamento questionável e aí... minha amiga começou a ter dúvidas se essa cisma contra mulheres com carteira de habilitação é realmente algo válido na comunidade dela ou algo que deveria ser mais discutido.


Enfim...eu ouvia, enquanto segurava o volante de meu carro, e não opinava muito, pois respeito a opção destas comunidades cujas mulheres não dirigem.






MARIDOS QUE NÃO TRABALHAM COM ESPOSAS QUE TRABALHAM

Um assunto delicado e que causou dúvidas na série: por que alguns personagens só ficam no kolel (yeshiva em tempo integral para homens casados) enquanto as mulheres trabalham em empregos normais e sustentam com seu salário a maior parte das despesas da casa?


A história é longa, mas vou tentar resumir... no shtetel (comunidades judaicas do interior do Leste Europeu, como a que você vê no Violinista no Telhado), os meninos judeus iam pra escola a partir dos 3 anos de idade. Quando estavam perto da idade de bar mitzvah (13 anos), eles eram testados em seus conhecimentos de Torá e Talmud... uma minoria de meninos que passavam nestes testes com ótimas notas passavam a pertencer a elite intelectual do shtetel e tinham a responsabilidade de aprender assuntos religiosos o dia inteiro. Esta elite intelectual era chamada de sheyne. Ter um sheyne na família era considerado o maior motivo de orgulho e felicidade e a família trabalhava duro para sustentá-lo. O sheyne não era preguiçoso, ele passava o dia inteiro estudando, pesquisando e de acordo com livros sobre a vida no shtetel, como Life is With People: The Culture of the Shtetel, escrito por Mark Zborowski, os sheynes eram pálidos pois raramente saiam ao sol, pois ficavam o dia inteiro debruçados sobre livros.


A grande maioria de meninos não atingia as notas altas e assim eram considerados judeus comuns e passavam a pertencer a classe trabalhadora do shtetel, que era chamada de proste. O proste trabalhava o dia inteiro em todas as profissões comuns da época... ele era sapateiro, joalheiro, costureiro, padeiro, vendedor... enfim. E as mulheres judias trabalhavam e cuidavam de seus afazeres (assim como era costumeiro na Europa).


Manter o modo de vida do shtetel, com uma elite intelectual sustentada por parentes proletários era um modo de vida SUSTENTÁVEL, pois a elite era pequena.


Com a destruição de todos os shtetels durante a Segunda Guerra Mundial, a realidade judaica mudou e o movimento haredi passou a adotar alguns costumes que não haviam antes da Segunda Guerra, entre eles o envio de TODOS os rapazes para escolas religiosas de tempo integral, quer eles queiram, quer não.


E hoje em dia, por algum motivo que ninguém sabe explicar direito, é esperado que todos os rapazes haredim passem o dia estudando, e se for possível, mesmo depois de casados, que continuem estudando...


Na teoria, isso é muito bonito, mas na prática... na prática isso causa vários problemas. Mas enfim, não estou aqui para falar de problemas e sim de Shtisel.


Agora que vocês já sabem como funcionava no shtetel, fica mais fácil entender porque algumas mulheres de Shtisel trabalham para sustentar os maridos que passam o dia estudando.







KOLEL

Kolel é uma instituição de estudos avançados de Talmud e literatura rabínica em tempo integral (de manhã cedo até o final da tarde ou início da noite), onde a maioria absoluta dos estudantes são casados. O kolel paga um valor ínfimo para seus estudantes. A maioria dos kolels depende de doadores. Esposas cujos maridos estudam em kolel tem que trabalhar para ajudar a pagar as despesas da casa. Nenhum homem casado haredi é obrigado a ir a um kolel, mas quem vai é muito respeitado na comuniadade.





REVOLUÇÃO FEMININA

É um ponto que foi apenas pincelado na série, mas que vemos sim acontecendo no mundo haredi. As mulheres estão crescendo de forma intelectual e emocional, comparando a vida delas com a vida de judias religiosas menos estritas (lembra da minha amiga que não dirigia ponderando se as mulheres que dirigem é que estão certas?), aspirando por diplomas para conseguir um salário maior... enfim... há sim uma certa revolução silenciosa acontecendo nestas comunidades.





UNIVERSIDADE

No mundo haredi-hardcore, seja ele hassídico ou não, Universidade é uma palavra proibida. Judeus, e principalmente Judias, não podem nem pensar em estudar em Faculdades ou Universidades. Não. Simplesmente não. Fim de discussão. Quem pertence a uma comunidade haredi-hardcore e frequenta uma Universidade, sofre preconceito.





SEM DINHEIRO

Todo mundo em Shtisel tem vida humilde e está sempre pensando em como pagar as contas de amanhã. A dificuldade financeira é uma realidade frequente no mundo haredi, e ela possui vários motivos... um deles é o fato da maioria das escolas haredim proibirem ensino secular (inglês, história, geografia, matemática mais avançada etc), outro motivo é proibirem que seus jovens cursem ensino superior e isso os impossibilita de competirem por empregos de maior salário. Mas já que Shtisel se passa em Israel, uma coisa vocês tem que entender que mesmo com curso universitário ou empregos bons, o custo de vida em Israel é alto.


O custo de vida é alto porque os impostos são altíssimos. É fácil elogiarmos as invenções dos engenheiros do Exército Israelense, a construção de aviões, sistema de defesa, a compra de novos caças de guerra com a tecnologia mais avançada do mundo etc etc etc mas... quem paga para a manutenção deste Exército e tudo o que ele precisa? O povo, através dos impostos.


Ninguém vai pra Israel pra se tornar rico financeiramente. Isso não existe, a não ser que a pessoa ganhe na loteria.


E é por i